18.2.15

projeto de descalço

estou no centro geométrico da avenida quando me ocorre descalçar-me. imagino-me chegar com os sapatos na mão e assaltam-me dúvidas, evidentemente. deverei aparecer com um sapato em cada mão, ou o par numa só? a ser, a esquerda, ou a direita? ou, unidos pelos cordões, dependurados do pescoço, cachecol estranho de inverno solarengo?

do ponto de vista cromático, os sapatos castanhos são um corpo estranho na mancha azul que me oculta a nudez. um corpo tão estranho quanto os contrafortes novos o são para os calcanhares puídos, avessos às quase estreias, um problema de ovo contra galinha, caso clássico, em desenvolvimento.

onde me dirijo, os pés ocultar-se-ão debaixo da mesa, após a singularidade momentânea tornar-se-ão invisíveis, não mais deles me recordarei até à saída. quiçá, após esse intervalo de tempo indefinido e infinito, o descalço não será o novo normal. ultrapassada a dúvida perene da mão adequada para o transporte, verei executivos manuseando sapatos, quais carlos e ega correndo para o bonde de chapéu na mão.

e eis que me esqueço mesmo, esqueço que estou calçado. passam a certeza invisível, ganham direito de presença, até há pouco, muitas horas e quilómetros após. só então os descalço, os arrumo, decido que assim ficarão até um próximo milénio, outros agraciarão com o seu afago os meus artelhos, assumo-me talião, condeno-os ao repouso da eternidade. 

eis uns sapatos com que nunca chegarei a andar descalço.

17.2.15

tornando-me japonês

se eu fosse japonês, comeria sushi com a mão, segurando dextramente a peça com os dedos, abocando-a em gesto rápido, deglutindo-a com samuraiana precisão.

assim dito, evidenciaria a minha incivilidade, a minha deselegância, a minha rudeza, até. mas sei, de provar outras iguarias, que a mão, os dedos, não só fazem parte da experiência completa, como sem ela, sem eles, não há completitude,  não há experiência, sequer.

sei como comeria se o fizesse com a mão. sei do ritmo, do preceito, do ritual a seguir para a degustação ideal. apenas uma convenção, única e irrisória, se interpõe entre mim e a plenitude. agora que a barreira se visibiliza, não sei quanto tempo resistirá. o do silvo de um sabre, suponho.

ao interiorizar o hábito, como se viera do sol nascente, torno irreversível a minha opção, as minhas mãos retornam, por fim onde pertencem.

ao meu inteiro controlo.

16.2.15

exatamente como a pele

chegam-me os cadernos de origens distantes, entregues à porta com aviso de receção. sem abrir ainda, já sei o que irei encontrar: são dois, um de capa como couro envelhecido, outro com capa como nuvem no segundo antes do sol. toco-lhes longitudinalmente, desnudo-lhes a superfície, descubro-lhes aromas.

o papel é da cor de pétalas de girassol que vi em certos campos num verão ido. pontos siderais marcam como matriz invisível a estrutura da página, a arquitetura vindoura dos meus pensamentos. 

aprende-se um caderno como se fora uma pele. sei-o, escrevendo palavras invisíveis com a ponta levíssima do dedo, antecipo o fluir das letras azuis, como estas que agora desenho nas páginas espraiadas no meu colo. 

quando se dá ao meu toque, sei que também o caderno me aprende. como a pele, exatamente como a pele.

15.2.15

flagrante devido

atravesso o parque em direção ao edifício grande. não é para ele que me dirijo, mas é para ele que aponto os passos. mesmo ali, tenho uma câmara nos olhos. procuro um ângulo, um pormenor, algo, que ainda não tenha captado em papel de nunca. 

esta semana já passei por aquela árvore. esta, e na semana anterior também. a árvore vê-me passar com frequência e hoje, dos troncos cinzentos, brindou-me com dois botões, de um tom de pétala de rosa deixada ao embalo do sol.

vejo a minha fotografia da manhã, pulo para cima do muro, estão altos os botões. é difícil isolá-los, com a câmara do telefone, mala na outra mão, instabilidade de quem quer capturar a parte sem o todo, o todo sem a parte.

abaixo, passa um sobretudo preto, com óculos de massa, pretos. olhamo-nos e ele, mais novo que eu, não mostra espanto, ou não o denuncia.

apanha-me só em flagrante, a apanhar a vida em flagrante.

14.2.15

letra bonita

é um caderno de argolas, aberto aqui à frente, na mesa onde escrevo, duas páginas preenchidas, palavras azuis reclinadas sobre linhas azuis. a caneta dela está pousada a um ângulo de cento e trinta e cinco graus acima do caderno.

conheço aquela letra desde que os meus olhos aprenderam a luz, mas ainda o espanto me assoma com a beleza, o ritmo, a regularidade, a precisão do traço. admiro os "r" e os "z", perfeitamente formados.

também ele tinha uma letra bonita, bonita de forma diferente da dela, mais inclinada para a direita, na linha. mas bonita, como a recordo.

a minha letra sai mais à dele.

mas não é tão bonita quanto a de qualquer dos dois.