15.3.15

ao despertar

foi breve o sono, pouco mais que duas ou três sombras, o tempo entre deixar que a minha alma se silencie, e descobrir que fala alto, a meio da noite.

foi breve o sono, apenas o tempo de um ou dois sonhos, tão lestos no passar que deles não retenho mais do que a memória de um rasto de luz.

foi tão breve o sono que hoje acordei com o corpo prodigiosamente desarrumado.

9.3.15

liberdade compulsiva

atravesso o campo em verde, a alameda em pedra, o caminho em terra solta. em todo o percurso encontro flores novíssimas, jorros de cor a brotar no chão, suplicando que lhes leve as formas de luz, que com elas pinte quadros, que as litografe no olhar. 

tiro a máquina de fotografar. enquadro, toco o obturador. e então, a realidade acerta-me no âmago, como o sol, violentamente azul, apercebo-me do absurdo de aprisionar a imagem das flores. porquê? para quê? a mim faço perguntas irrespondíveis.

liberto compulsivamente as flores: a imagem a elas pertence, como a solidão pertence a mim. 

8.3.15

uma infinita tristeza

je suis jean, disse-lhe eu, quando ela suprimiu o grito ao ver um morto abrir os olhos. abandonado no campo, para o regar com sangue, ela chegou primeiro que a eternidade. longos cabelos, um lago no olhar, um gesto terno e uma voz de aurora.

o nome não sei, não saberei – os nomes não importam. a vida, a ela a devo, nada mais interessa. assola-me a vergonha de ter fraquejado nas palavras quando a lâmina em brasa encontrou a bala e a obrigou a abandonar o aconchego do meu corpo. o sangue jorrou com força, e ela estancou-o com destreza igual à que mostrou para me doar a vida.

desmaiei de dor. o mundo apenas o vi de novo nos olhos dela, quando sussurrava baixo, jean.  lavou-me a ferida, aplicou ervas, enfaixou-me, saciou-me a sede e a fome. a mim, soldado de Soult, antes orgulhoso invasor, agora, esvaído vencido.

amparou-me até uma árvore, ajudou-me a sentar, encostado ao tronco adormeci. acordei aos primeiros raios do amanhecer. debalde a procurei, perto e até onde a vista conseguiu alcançar. chamei por ela uma vez, inconnue. depois calei-me, não queria atrair a atenção dos seus compatriotas. recuperei, mas os meus passos não voltaram a cruzar os dos meus companheiros de campanha. vivo em pleno a minha morte.

junto da cicatriz conservo o brinco que me deixou, dependurado de um fio. uma argola grande, como a saudade que dela tenho, como a tristeza que me assola, na luz das noites, e no escuro dos dias. 

para quê salvar o corpo, se a alma morre a cada hora?