je suis jean, disse-lhe eu, quando ela suprimiu o grito ao ver um morto abrir os olhos. abandonado no campo, para o regar com sangue, ela chegou primeiro que a eternidade. longos cabelos, um lago no olhar, um gesto terno e uma voz de aurora.
o nome não sei, não saberei – os nomes não importam. a vida, a ela a devo, nada mais interessa. assola-me a vergonha de ter fraquejado nas palavras quando a lâmina em brasa encontrou a bala e a obrigou a abandonar o aconchego do meu corpo. o sangue jorrou com força, e ela estancou-o com destreza igual à que mostrou para me doar a vida.
desmaiei de dor. o mundo apenas o vi de novo nos olhos dela, quando sussurrava baixo, jean. lavou-me a ferida, aplicou ervas, enfaixou-me, saciou-me a sede e a fome. a mim, soldado de Soult, antes orgulhoso invasor, agora, esvaído vencido.
amparou-me até uma árvore, ajudou-me a sentar, encostado ao tronco adormeci. acordei aos primeiros raios do amanhecer. debalde a procurei, perto e até onde a vista conseguiu alcançar. chamei por ela uma vez, inconnue. depois calei-me, não queria atrair a atenção dos seus compatriotas. recuperei, mas os meus passos não voltaram a cruzar os dos meus companheiros de campanha. vivo em pleno a minha morte.
junto da cicatriz conservo o brinco que me deixou, dependurado de um fio. uma argola grande, como a saudade que dela tenho, como a tristeza que me assola, na luz das noites, e no escuro dos dias.
para quê salvar o corpo, se a alma morre a cada hora?