18.2.15

projeto de descalço

estou no centro geométrico da avenida quando me ocorre descalçar-me. imagino-me chegar com os sapatos na mão e assaltam-me dúvidas, evidentemente. deverei aparecer com um sapato em cada mão, ou o par numa só? a ser, a esquerda, ou a direita? ou, unidos pelos cordões, dependurados do pescoço, cachecol estranho de inverno solarengo?

do ponto de vista cromático, os sapatos castanhos são um corpo estranho na mancha azul que me oculta a nudez. um corpo tão estranho quanto os contrafortes novos o são para os calcanhares puídos, avessos às quase estreias, um problema de ovo contra galinha, caso clássico, em desenvolvimento.

onde me dirijo, os pés ocultar-se-ão debaixo da mesa, após a singularidade momentânea tornar-se-ão invisíveis, não mais deles me recordarei até à saída. quiçá, após esse intervalo de tempo indefinido e infinito, o descalço não será o novo normal. ultrapassada a dúvida perene da mão adequada para o transporte, verei executivos manuseando sapatos, quais carlos e ega correndo para o bonde de chapéu na mão.

e eis que me esqueço mesmo, esqueço que estou calçado. passam a certeza invisível, ganham direito de presença, até há pouco, muitas horas e quilómetros após. só então os descalço, os arrumo, decido que assim ficarão até um próximo milénio, outros agraciarão com o seu afago os meus artelhos, assumo-me talião, condeno-os ao repouso da eternidade. 

eis uns sapatos com que nunca chegarei a andar descalço.