era à quinta que saíamos à mesma hora. descíamos juntos a rua da escola, subíamos, de caminho, até ao miradouro e às vezes estacávamos ali, em espanto, os olhares a cruzarem-se no horizonte. num desses dias, aproximei a cara da dela. vi-lhe a expressão de pasmo e o fulminante olhar para cima, em busca de uma nuvem súbita, no céu absurdamente azul. o beijo ficou dependurado, periclitante, falho de coragem para saltar. na semana seguinte não repeti a ancoragem, nem na outra. nem na outra.
comecei a contar-lhe anedotas no trajeto. colecionei-as: arranjei repertório, anotava-as em bocados de papel que me atafulhavam os bolsos, copiava-as das seleções do reader’s digest da casa da avó, revistas amarelentas, de capa esbambalhada. treinei, afinei o remate com colegas, com a turma toda. um dia descobri que tinha cavado ouro com uma anedota novinhinha: quando a contei, os risos das minhas cobaias jorraram como água à abertura da torneira. era quarta.
na quinta, anedotei o caminho todo até ao miradouro. parámos. olhei para o céu: desnuvado, até onde a vista alcançava. avancei. com o sucesso do dia anterior
já te contei aquela?
enquanto dardejava, os olhos dela, grandes, abriram mais, a cabeça inclinou-se na direção do poente e trinou a mais bela gargalhada desde que eu conhecia o mundo.
aproximei a cara, senti no ar ainda o perfume do riso. no céu não apareceram nuvens invisíveis. ela não olhou para cima.
foi então que o beijo, por fim, saltou.